Não havia nenhum tipo de organização ali, era Alejandra com Bandeira com Drummond do lado de Oliveira e ali, olha, o Silva no meio do Eco.
Um caos.
Nenhuma lógica notável exceto os nomes das prateleiras, os dos "famosos" (que se não tiver aspas, o espírito do poeta vem te puxar o pé de noite - e acredite, última coisa que eu quero é ficar acordada de madrugada pensando em amor).
Procurava um livro que começava com a letra D.
Um dia, no banheiro de uma amiga, achei um livro grosso e vermelho, num banquinho.
Pensei: Quem lê poesia cagando?
Pois bem, alguém lia. E não tem hora pra ler poesia, na verdade.
Assim como, pensei, não tem ordem na poesia.
Só se ela for concreta.
E ali era tudo madeira.
Veja bem, madeira é, até onde eu saiba, um sólido. Não é cimento, mas sólidos costumam possuir a característica da concretude como um aspecto principal de sua formação.
Isso se dá pela organização das partículas dentro das moléculas destes materiais. Quanto mais organizadas, mais firmes. Quanto mais firme, menos movimento dessas partículas, tornando o material mais rijo, menos... Espontâneo.
Estava eu, ali, sólida, na frente da estante de madeira, sólida, buscando um livro de poesia (que não era concreta), dentro da livraria lotada.
Gentes feito partículas se trombando, algumas sabiam o que queriam, outras vagavam no espaço pequeno, fatalmente às 14h de um sábado ensolarado. E o sol, claro, iluminava o concreto.
Sorri. A aparente desordem da estante era exatamente a parte em desequilíbrio necessária de um sistema do qual eu fazia parte.
Ali, eu era livre para esbarrar meus olhos nas lombadas em alta velocidade pela quinta, sétima vez, questionar impaciente se era desatenção ou despropósito, revirar vertiginosamente os olhos em frustração, me apertar intensamente os nós dos dedos e sentir aquecer as orelhas até espremer o cenho, dispersando energia suficiente para que meu cérebro captasse as serifas brancas na lateral de outro livro.
Não tinha nome nem próximo do que eu buscava. Era vermelho, isto é verdade. Feito carnívora faminta pela cor, avancei. Pausei. Acariciei o título como quem toca uma promessa de amor em uma carta já amarelada pelo tempo, porém perfeitamente legível.
Retirei o livro, sólido, dentre os outros, sólidos, da estante sólida, seca, talvez insípida. Não era inodora, senti óleo de peroba, tinta de gráfica e papel. Retirei como quem tenta colocar um bebê pela primeira vez em um berço após longa noite de choro. Primeiro os pés, apoiando até o último segundo e mais um pouco. Sem tremer. Eu não tremi. Eu era sólida.
Até ali, certeza, eu era sólida.
O exato momento em que começou a mudança de estado, não sei precisar. Sabe-se que o que é sólido, antes de desmoronar, treme. Eu não tremi.
Implodi sem sinal, desabei em silêncio. O desastre mais belo que já vi.
Pelo luto do que fui, tornei então, ali, meus olhos pesados.
Pesados como um caixão no ombro, sem alças douradas - mas com madeira de lei.
Cada passo em direção ao profundo inevitável era um aceno contra minha vontade, me despedia da superfície na qual estive nos últimos anos, a poesia incapaz de me atravessar, eu era à prova de almas.
A superfície blindada, gélida, sólida, estruturada com ligações estáveis e previsíveis de um chulo, sarcástico, datado, humor. Da falta de graça, do sério e pontual, da lógica metódica das planilhas do cotidiano, dos beijos vazios, dos perfumes que não excitam, das carnes que não me ouvem e eu não faço questão de ouvir.
Dizem que se está à flor da pele, é porque o algo que há por dentro se extrude. Pressiona, aquece, movimenta, reluz. Ali ainda não era extrusão.
Ali escorria por dentro. O caminho do profundo deixava lambidas de lava em cada curva do dentro de mim.
Deslizando em gratidão, me deixava levar pelo caminho natural, a espontaneidade das partículas em minhas moléculas de todo tipo de tecido, sólido, líquido, se fundindo em uma única substância etérea.
Já não era sólida.
Já não era líquida.
Eu era algo mais, algo quente e transparente que vertia como cachoeira que vai do chão ao céu, desaguando em alguma outra caverna de vidro que não era minha, mas também era dentro de mim. Pois, de lei: sólida por fora, úmida por dentro.
A agitação molecular era particularmente violenta. Os pensamentos, em bolhas, nasciam e estouravam ainda sem sair da superfície. Era preciso uma unicidade, um equilíbrio. Estávamos fora de controle, as bolhas e eu. A busca do equilíbrio veio através de um respiro profundo, sorriso vindo dos pulmões: havia encontrado o que precisava e não era o que procurava. Era assim que as coisas aconteciam, não havia controle.
Não há controle. Nunca há. Há uma ilusão de controle que acaricia qualquer certeza com pressão constante e ritmada, até que se engasga por cima do peito, a expectativa enrijecendo e aumentando com o tempo, coberta pelo véu vermelho do ego, até que ao tentar implodir, explode.
Extrusão.
A realidade escapa pelos poros, por todas as lacunas que não podemos controlar e escondemos, portanto, por baixo dos lençóis da pele.
A realidade é feita de material incontrolável, e é por isso mesmo que a alma, quando alimentada, encontra maneiras de vazar, nobre, pelos espaços de ar. Escapa inodora, insípida, incolor, intensa, internamente pacífica, extrema e particularmente elétrica, traduzida em cada joule de paixão não newtoniana pelo mundo.
Porque ali, já não era mais sólida. Era fluido.
Fluí pra mim e trouxe o livro.
Ao ler, re-sinto.
Que delicadeza de texto ❤️